terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

DICA DE MÚSICA



Poeta da Cidade – Martinho da Vila

O processo de consolidação do samba teve em Noel Rosa um de seus mais importantes arquitetos. O gênero, que se tornou o maior representante de brasilidade na música popular, foi o ritmo preferido do compositor. Noel contribuiu substancialmente para a evolução formal do samba quando, a partir do início dos anos 30, suas composições passaram a se distinguir do samba amaxixado dos anos 20.

Noel Rosa foi o primeiro grande mestre brasileiro da palavra cantada. Dono de uma capacidade rara de unir texto e melodia, chegou a requintes virtuosísticos e a uma fluência ímpar de versos e rimas. As imagens que projetou em suas letras surpreenderam pelos caminhos improváveis, tal qual seu rimário. Inevitavelmente, transformou-se no primeiro cancionista brasileiro a ser alçado ao status de poeta. Por conta de sua propriedade única no manejo da linguagem, recebeu ainda em vida alcunhas como ‘filósofo do samba’ e o ‘poeta da Vila’. Partindo desse pressuposto, Martinho da Vila o rebatiza como Poeta da Cidade nesteseu disco em comemoração aos 100 anos de nascimento de Noel, lançado agora pela Biscoito Fino.

Martinho lança mão de uma equipe de respeito que o ajuda a traçar um relicário pessoal e afetivo da obra do compositor: “Para definir as intérpretes, o Rildo optou por vozes novas, algumas inéditas como as da Analimar Ventapani e Maíra Freitas. Eu recomendei a Patrícia Hora. Ele quis a Ana Costa, eu a Aline Calixto. Quem me convocou foi o filho Martinho Filho”.

Em Poeta da Cidade, Martinho volta a trabalhar, mais de dez anos depois, com Rildo Hora, produtor de discos clássicos de sua carreira. Outra lendária parceria retomada agora é com o artista plástico Elifas Andreato que, após quase duas décadas, volta a assinar a capa de um CD de Martinho. Entre as intérpretes, a maioria com carreiras construídas no mundo do samba, as duas exceções são Patrícia Hora, filha do maestro Rildo, e Maíra Freitas, filha do nosso mestre de cerimônias, que estreiam aqui como cantoras. Pianista clássica, Maíra confere uma leitura totalmente nova à clássica Último Desejo.

A escolha do repertório, como o próprio Martinho explica alegoricamente, priorizou o compositor de letra e música, sem parcerias: “Mulher que tem muitas roupas, várias bolsas e diversos sapatos tem problema na ora de se vestir, assim como o produtor que tem um artista com vasta obra como o Noel Rosa, tem dificuldade de montar o repertório. Tendo que decidir, resolvemos pelo caminho das músicas individuais”. A exceção é Filosofia, feita com André Filho.

E como bem disse Martinho, bota problema nisso. Transformando todos os temas que o interessavam em canções, Noel tratou de uma vasta gama de assuntos em seus sambas. Entretanto, sua importância não estava apenas na variedade, como também na complexidade com que abordou esses assuntos.

Noel tratou da identidade nacional e, por extensão, do Brasil. Dono de um olhar atento aos problemas do país, inaugurou o viés de música social por aqui, quase sempre pelo caminho da ironia (casos de Minha Viola, Século do Progresso, Filosofia, E Não Brinca Não e Seja Breve). Ufanista mesmo foi com suas ‘redondezas’ – como os bairros de Vila Isabel, Estácio e Vila da Penha – e com os malandros que por ali gravitavam (Coisas Nossas, O X do Problema, Eu Vou Pra Vila). A visão que Noel perpassa se alinha com os códigos da malandragem, se atendo à figura romântica do malandro e em oposição ‘à truculência da navalha’ (Rapaz Folgado).

O Noel amoroso, com sua lírica desconcertante, por vezes patético, por outras filosófico, foi o mais constante. Suas canções de amor são marcadas pelo pessimismo (como Três apitos, inspirada em uma namorada, a operária Fina) e pela ironia, algumas chegam até a abordar a morte – exemplo de Último Desejo (feita para uma de suas paixões, a bailarina Ceci), Quando o Samba Acabou e Fita Amarela - e ainda, no extremo oposto, outras são bem humoradas e satíricas. Machista em relação às mulheres, o sambista entretanto nunca deixou de amá-las com intensidade (Cidade Mulher).

Enfim, Noel Rosa foi um cronista do seu tempo, dos maiores, graças a um talento único para captar as ‘coisas nossas’. Não só. Como bem sintetizou outro grande poeta do samba, Paulinho da Viola, “Noel Rosa é o pioneiro de uma forma, na qual a poesia popular, altamente sofisticada, embora saindo de maneira simples, junta-se a uma melodia sofisticada, de grande refinamento, dando a suas composições uma dimensão poucas vezes atingida na história da nossa música popular”. Poeta da Cidade traz o ‘encontro’ de dois cânones da arte do samba. Ao se ouvir as palavras e a notas de Noel Rosa, através de Martinho, o ‘feitiço da vila’ se cumpre: “Modéstia à parte, meus senhores, eles são da Vila!”.

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