domingo, 27 de junho de 2010

AINDA O MESTRE...


FOI-SE SARAMAGO

Publicado no Butiá Notícias Edição 605 de 25 e 26 de junho de 2010

Um fato marcou-me mais que a Copa do Mundo e os afazeres da rotina na última sexta, dia 18 de junho: a morte de José Saramago. O primeiro livro dele que li foi Ensaio Sobre a Cegueira há quase 10 anos. A história fala de uma cidade onde uma cegueira coletiva afeta a população, mudando hábitos e expondo o homem àquilo que de mais frágil e primitivo possuímos, além de mostrar a importância da solidariedade. Os livros de Saramago são daqueles que alteram definitivamente nossa percepção acerca da realidade. O motivo deve ser a forma com que este escritor português, único da língua a receber o Nobel de Literatura, imprime suas ideias e palavras nas páginas de seus livros. Saramago é aquilo que Gandhi queria dizer quando “mensagem e mensageiro tornam-se uma só coisa”. A coerência com suas convicções e valores o tornava um dos maiores escritores vivos até aquela melancólica manhã de sexta-feira.

Em suas próprias palavras dizia: “Sou um sobrevivente num tempo de mudanças, dentre as quais nem todas são boas. Sou um sobrevivente por ter conseguido manter alguns valores éticos. Venho de um tempo anterior e sou alguém que mantém, ou pelo menos esforça-se por manter, uma coerência em relação aos princípios pelos quais sempre orientou-se”. O sábio de 87 anos morreu na ilha espanhola de Lanzarote, onde vivia há 18 anos depois de ter deixado Portugal em auto-exílio após o governo português recusar-se a indicar a um prêmio literário uma de suas melhores obras, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Saramago era ácido em suas palavras. Dizia o que pensava e acreditava. Era fiel ao seu ponto de vista. Acusava a religião e a globalização por grande parte dos problemas que enfrentamos atualmente. Como um comunista clássico, era ateu. Mas isso não impedia que um ar místico impregnasse seus romances. Parecendo ter transcendido sua condição humana, afirmava não temer a morte e parafraseando sua avó analfabeta, dizia “que viver é bom”.

O velho português vai deixar vago seu lugar neste mundo. Como bem disse Fernando Meireles sobre sua morte, “o mundo ficou mais burro sem Saramago”. Num mundo carente de valores e utopias onde a única crença parece ser a do dinheiro, a morte dele tem um significado profundo. Nos faz refletir sobre o dia em que o último resistente se for. A que estará reduzida a humanidade? Seremos como presos numa caverna que acreditam serem suas sombras refletidas no fundo, a verdadeira e única realidade.

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