domingo, 20 de fevereiro de 2011

No Leste europeu, o peso do passado




A pressão anticomunista decorrente da revolta de 1989 resultou na recuperação do conceito de Estado-nação da Europa Oriental. É por isso que a retórica nacionalista e etnocêntrica não constitui um fenômeno marginal, mas sim um eixo estruturante da vida pública e política


por Michael Minkenberg


Na Europa Oriental, os grupos da direita radical se erguem tanto contra a nova ordem liberal, como contra o socialismo de Estado que a precedeu. Sua existência não é surpreendente, alguns estudiosos os consideram até mesmo como uma “patologia normal”, próprios de sociedades engajadas numa modernização rápida. O interesse no fenômeno, reside, sobretudo, nas suas características regionais.

A direita radical no Leste distingue-se em muitos aspectos de suas congêneres ocidentais. Desde a mudança de regime, ela registra resultados eleitorais muitas vezes impressionantes, mas altamente flutuantes de acordo com o local e o momento.

Outra característica, relacionada a uma ideologia abertamente pré ou antidemocrática dessas correntes, ao contrário de suas equivalentes ocidentais, é que elas apregoam em alto e bom tom sua nostalgia pelos regimes despóticos de tempos passados, junto com seu prevalente conceito étnico e territorial de “identidade” nacional. Esse nacionalismo confuso admite algumas variações, em primeiro lugar, uma direita fascista e autocrática, inspirada nas ditaduras do período de entreguerras, particularmente forte na Rússia, Romênia e, mais recentemente, na Bulgária, com vínculos com os movimentos “nacional-comunistas” originados no colapso do império soviético, por outro lado, uma direita mais etnocêntrica e racista, ela também adepta do revisionismo territorial, localizada principalmente na Hungria e na República Tcheca.

O desejo de redesenhar as fronteiras não é, de fato, só da Rússia, cujo sonho nacionalista, desde o século XIX, é ter portos nas águas quentes do Oceano Índico. Os “Republicanos” checos, por exemplo, exigem o retorno de seu país às fronteiras da antiga Checoslováquia, na qual só teria direito de cidadania uma população “homogênea”. Na Romênia, o Partido da Grande Romênia (PRM) reivindica as fronteiras do período de entreguerras para exigir a anexação da Moldávia. Mas é na Hungria que os desejos de reconquista são mais virulentos. O Partido pela Justiça e a Vida (MIEP) e o Movimento Por Uma Hungria Melhor (Jobbik), defendem uma revisão do Tratado de Trianon1 e a volta das fronteiras aos limites do Império dos Habsburgos. Todos esses movimentos se apropriam de símbolos dos movimentos e regimes fascistas da década de 1930, como as Cruzes Flechadas da Hungria ou a Guarda de Ferro da Romênia.

Na Polônia, o fenômeno está impregnado de fundamentalismo religioso. No início do século XX, Roman Dmowski, o teórico da “democracia nacional”, já havia explicado que só os católicos eram bons poloneses. No mesmo espírito, a União Nacional Cristã (ZChN) está martelando, desde os anos 1990, que o dogma católico deve servir de base para o país, ao qual corresponde defender os interesses de todos os poloneses “étnicos” espalhados pela Europa Oriental. Agora, a Liga das Famílias Polonesas (LPR) retomou o estandarte. Tendo reativado, em proveito próprio, as redes de seus predecessores falecidos (ZChN, o Movimento para a Reconstrução da Polônia [POR] e a Plataforma Cívica [SO]), ela obteve o apoio da Rádio Maryja, uma rádio ultracatólica, na qual milhões de ouvintes escutam regularmente discursos tradicionalistas, xenófobos e antissemitas.



Adeptas da violência

A assimetria entre Leste e Oeste se manifesta também em termos de organização. Frequentemente adeptas da violência, essas organizações compartilham, em maior ou menor grau, através do continente, do mesmo desdém pelas eleições e a política institucional, as mesmas tendências racistas e o mesmo culto ao homem forte. Dessa forma, na Polônia, algumas centenas de ativistas se reúnem regularmente em várias cidades, cujas paredes são cobertas com pichações fascistas e antissemitas. As Juventudes Polonesas, afiliadas até 2006 à LPR, são famosas por sua violência. Na República Tcheca, prospera um “ambiente” radical que tem como alvos preferenciais os ciganos, e, portanto, tem a simpatia de parte da população. Na Hungria, na década de 1990, estimava-se em cerca de 4.000 os integrantes do movimento skinhead. Na Rússia, os meios de comunicação atribuem a este último grupo, pelo menos, 50 mil seguidores, aos quais se juntam outros grupos violentos, como os adeptos ultraortodoxos de Alexander Dugin ou os militantes xenófobos do Movimento Contra a Imigração Ilegal (MITI).

A extrema direita, entretanto, é menos estruturada nesses países do que nos seus vizinhos ocidentais, mas isso acontece igualmente com a maioria dos partidos políticos. Suas oscilações eleitorais constantes e sua inclinação por se recomporem de uma eleição a outra dão às direitas radicais do Leste uma fluidez desconcertante, o que também contribui para tornar altamente porosa a linha de demarcação entre os partidos e os movimentos da direita radical, e entre esses e a direita conservadora.

Esta característica peculiar dos novos membros da União Europeia se explica pela mudança dos regimes que eles conheceram, mas também pela história particular da região. Os elementos integrantes dessa herança se sobrepõem ao espaço democrático como acontece com as camadas de uma cebola, que precisa ser descascada camada após camada se quisermos identificar o fenômeno.

A primeira é formada pelas consequências imediatas do processo de desmembramento da URSS, que começou em 1989 com a improvisação que marcou a transição para a democracia e a economia de mercado, da mesma forma como os enormes esforços de adaptação realizados tendo em vista a adesão dos Estados-membro do Pacto de Varsóvia e da União Europeia. Estes choques puseram o tecido social à dura prova, cavando um fosso até então desconhecido entre ricos e pobres e criando um súbito descompasso entre as necessidades da população e a falta de capital disponível, incluindo capital de confiança. Os extremistas de direita souberam explorar o descontentamento popular causado por essa mudança levada a cabo com fórceps.

A seguir, vem o legado pesado dos antigos regimes comunistas: uma burocracia inadaptada, uma cultura política com pouco espaço para a tolerância, elites que não foram formadas no novo sistema, de partidos mal-enraizados na sociedade, uma economia penalizada por meio século de centralismo autoritário. Esse balanço, brutalmente desenhado, provoca um ressentimento que, num espaço político mal-estruturado, beneficia a extrema direita. Como os imigrantes, que servem de bodes expiatórios convenientes na Europa Ocidental, não habitam a Europa do Leste, esse papel coube às minorias locais e aos países vizinhos, o que vai afetar longamente as relações entre os Estados.



sem tradição democrática

A terceira camada da cebola é ainda mais espessa, consiste na falta de experiência democrática da qual sofrem todos os países dessa região, desde sua independência (com a notável exceção da Tchecoslováquia). Isso explica as dificuldades encontradas por suas elites, ao contrário das que têm dirigido a Alemanha e a Áustria, depois de 1945, para se ajustar ao novo figurino da modernidade, uma tarefa tornada ainda mais difícil, uma vez de que elas não podem tomar por referencia experiências democráticas mais antigas, especialmente do período entreguerras. Não surpreende, portanto, que as raras respostas para a extrema direita partem quase que exclusivamente das instituições estatais.

A emergência da direita radical no Leste está enraizada numa história mais profunda: a das nações que compõem essa parte do continente. Sua construção, iniciada no século XIX e interrompida várias vezes durante o século XX, ainda não está totalmente concluída. Diferentemente da Europa Ocidental, quase todos os países conquistaram sua independência com a queda do muro e pertenciam, até a Primeira Guerra Mundial, aos impérios multinacionais Russo, Austro-Húngaro, Otomano. Na ausência de um Estado suscetível de canalizar uma consciência nacional, ela foi forjada, nesses países, durante o século XIX, a partir de um conceito étnico de nação.

É por isso que a continuidade do Estado e de suas fronteiras continua, ainda hoje, mal-assegurada. Desde 1918, a configuração triangular desses países não evoluiu: um Estado-nação com minorias “estrangeiras” dentro de suas fronteiras e espalhados no exterior, bolsões de populações autóctones mais ou menos dispostas a integrar a “mãe pátria”. Durante o período do socialismo soviético, um internacionalismo de fachada conseguiu camuflar essas tensões que, desde 1989, podem novamente aparecer à luz do dia, alimentadas e exploradas pelos ultranacionalistas.

A pressão anticomunista decorrente da revolta de 1989 resultou na recuperação do conceito de Estados-nação da Europa Oriental. É por isso que a retórica nacionalista e etnocêntrica não constitui aí, de forma alguma, um fenômeno marginal, ao contrário, tornou-se um eixo estruturante da vida pública e política, especialmente num contexto pós-comunista que atribui um papel menor para a sociedade civil. Quando, além disso, se misturam à rejeição das elites e à decepção com os políticos, não é de se surpreender que a sociedade se incline cada vez mais para a direita.

Michael Minkenberg

é professor da Universidade Viadrina (Frankfurt sur l’Oder).

1 Imposto pelos Aliados, em 4 de junho de 1920, o Tratado de Trianon prevê o desmantelamento da Hungria, que deveria ceder a Eslováquia e a Rutênia para a Tchecoslováquia, a Croácia à Iugoslávia e a Transilvânia à Romênia.

Em: http://diplomatique.uol.com.br/

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