domingo, 20 de fevereiro de 2011

Que é ser de esquerda, hoje?



O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque
complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a
burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à
desconcentração das terras e à socialização do poder político e
econômico.

Luiz Marques


A “modernidade” nasceu com o Renascimento, a Reforma e a conquista das
Américas. Encerrou-se com os horrores das duas Guerras Mundiais.
Começou então a gincana intelectual para achar uma expressão adequada
à sociedade que sobreveio. “Pós-industrial”, arriscou-se nos anos 50.
“Pós-moderna”, insinuou-se nos 80. “Era nova”, comemorou-se no auge da
globalização teleguiada pelo capital financeiro, nos 90. Esses termos
suscitaram discussões e confusões semânticas na academia e nos cafés,
o que esvaziou o potencial analítico de cada um. Mas ajudaram a
compreender a crise dos paradigmas modernos e suas negatividades
intrínsecas.

Que paradigmas? 1) a economia de mercado, que acelerou a urbanização
do ser humano, desembocando no neoliberalismo e na violência no
cotidiano das metrópoles; 2) o progresso nas ciências e nas técnicas
de manipulação da matéria não-viva (exploração da energia atômica) e
viva (descoberta do DNA, práticas de clonagem), com desenlaces
imprevisíveis, indo de uma possível hecatombe a servidões jamais
imaginadas; 3) os esforços seculares da opinião pública para controlar
o poder político, que não consideraram o fato de a mídia induzir em
larga escala o juízo da cidadania, através da radiofonia, da televisão
e dos jornais, que a propriedade cruzada agrava; 4) a conversão do
indivíduo em vértice social e moral da sociedade, que não levou em
conta que a massificação (heteronomia) corrói a livre consciência
(autonomia) e; 5) a preeminência do eurocentrismo na avaliação de
outras culturas, que conduziu ao colonialismo.

A lição a ser tirada, conforme o filósofo francês Pierre Fougeyrollas
(A crise dos paradigmas modernos e o novo pensamento, 2007), remete a
uma forma de pensar comprometida com a espécie e o planeta. “Cósmica”,
para reintegrar a humanidade no cosmos. “Lúdica”, para estampar a
criatividade poética e artística na abordagem do real. “Demiúrgica”,
para apropriar-se do existente e promover uma recriação de tudo, com
espírito ecumênico. “Interativa”, para subverter as hierarquias
clássicas do conhecimento, conectando intuições e conceitos, ideias e
imagens. Os eixos estratégicos do “novo pensamento” decorrem de um
olhar realista sobre o presente.

Esse programa traduz a luta dos movimentos sociais e ambientalistas
que reúnem-se nas edições do Fórum Social Mundial e, para 2012, já
preparam um rol de intervenções visando a Conferência das Nações
Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que marcará duas
décadas da Eco-92. O modelo de desenvolvimento ocidental (o modo de
produção e de consumo), baseado na dominação da natureza, sem nenhum
planejamento democrático, esgotou-se. Urge um mundo de fraternidade.
Como pregou São Francisco de Assis, ao celebrar o Irmão Sol (Fratello
Sole) e a Irmã Lua (Sorella Luna). Ou como indicou Marx, no terceiro
volume d'O Capital, ao definir o socialismo como a sociedade onde “os
produtores associados organizam racionalmente as suas trocas com a
natureza”. No caso, a emotiva prece cristã e o prognóstico ateu
coincidem.

Ecossocialismo

Publicado em 2002, o “Manifesto Ecossocialista Internacional” conjuga
o socialismo e o ecologismo, de maneira orgânica. “Na nossa visão, as
crises ecológicas e o colapso social estão relacionados e deveriam ser
encarados como manifestações diferentes das mesmas forças
estruturais”, lê-se no documento. Os desequilíbrios são o preço pago
pela incontrolável dinâmica da acumulação, da ânsia de rentabilidade
que não pode ser cancelada, da suposição de que os recursos naturais
são infinitos, do ideal de enriquecimento pessoal. “Cresça ou morra”,
é o lema do capitalismo. Seja “vencedor”, não “perdedor”, é o
imperativo do mercado. No entanto, a lógica do produtivismo é
insuportável. Orientada pelo valor de troca em detrimento do valor de
uso, a produção ilimitada causa danos ambientais de proporções
irreparáveis.

“Não se trata de opor os 'maus' capitalistas ecocidas aos 'bons'
capitalistas verdes: é o próprio sistema, ancorado na concorrência
impiedosa, nas exigências de lucro rápido, que é o destruidor do meio
ambiente”, sublinha Michael Löwy. Sob certo aspecto, a falsa
subdivisão apareceu no Protocolo de Kyoto (1997), que empregou dois
mecanismos na tentativa de conter as emissões de carbono na atmosfera,
o Cap and Trade: um teto máximo de emissões e um mercado de troca de
títulos de direito de emissão de carbono no hemisfério Sul, para
compensar a poluição provocada pelas nações industrializadas do Norte.
Com o que o carbono atmosférico virou uma commodity.Forjado nas leis
do mercado, o artifício para sensibilizar (a rigor, chantagear) o
“empreendorismo” fracassou e as emissões aumentaram três vezes mais. A
autonomização da economia não permite a sua subordinação a um controle
social, político ou ético-ambiental.

O resultado é a profusão de bens desnecessários, e a escassez daqueles
necessários às demandas sociais e ao equilíbrio ecológico. A política
econômica capitalista é alinhavada por valores monetários. Não se rege
por nenhuma consciência de espécie e tampouco planetária. Por isso,
acarreta riscos iminentes para o futuro. “Se a primeira contradição do
capitalismo se dá entre as forças produtivas e as relações de
produção, a segunda ocorre entre as forças produtivas e as condições
de produção (trabalhadores, espaço urbano, natureza)”, observou James
O'Connor, editor da revista norte-americana Capitalism, Nature and
Socialism. Hoje, não existe a contradição principal e a secundária,
elas apresentam-se imbricadas. O ecossocialismo pugna em ambas as
frentes.

O marxismo renovou-se ao encontrar a ecologia, a problemática de
gênero e raça. Não se confirmou a assertiva de que suas categorias
teóricas (os modos de produção e a formação econômico-social) seriam
demasiado esquemáticas para apreender a sobreposição das esferas
ideológica, política e econômica, e a articulação dos processos
ecológicos, tecnológicos e culturais que constituem os suportes de
sustentabilidade da produção. O marxismo revelou-se aberto às
oposições não-classistas e comedido em relação à noção de “progresso”.
Atento às forças destrutivas do capitalismo. Reside aí a contribuição
do ecologismo à práxismarxista. Em contrapartida, os movimentos
ecologistas que estenderam as mãos ao marxismo somaram, à denúncia do
produtivismo, a percepção crítica sobre as estruturas sócio-econômicas
que impulsionam a ganância.

Ecologia de mercado

Não raros, circunscrevem as mobilizações ecológicas aos temas
pontuais, sem contextualizá-las em uma totalidade significativa.
Apostam em um “capitalismo limpo”, que combine a “responsabilidade
social”, apregoada pelos que elidiram do Estado a obrigação de
políticas para erradicar a pobreza, e a “responsabilidade verde”,
destacada com ridículas medalhas ao mérito para as empresas que adotam
uma praça ou um canteiro de plantas. Abstêm-se de pressionar o
aparelho estatal para que tome iniciativas em prol dos setores sociais
desfavorecidos e do combalido meio ambiente. Propõem “ecotaxas” aos
infratores da legalidade, se tanto. Preocupam-se com os “excessos”,
não com o que rotiniza a predação. Tais inhapas são absorvidas pelo
status quo, passando a impressão que a ameaça sobre a Terra (Gaia, no
dizer de um pioneiro, José Lutzenberger) pode ser revertida com um
marketingde “varejo”, prescindindo das políticas de “atacado”.

Se essa parcela de ativistas exprime um discernimento precário ao
agir, o mesmo ocorre quando o movimento operário alia-se ao lobby da
indústria automobilística para forçar vantagens fiscais. O automóvel,
glamourizado e erotizado pela publicidade, é um símbolo do american
way of life, da incitação ao consumo individual. Calcula-se que 45% do
território de Los Angeles esteja reservado aos carros, incluindo a
área viária e os estacionamentos. Em São Paulo, chega-se a algo em
torno de 35%. Politicamente correto é investir no transporte coletivo
de qualidade, em faixas segregadas para ônibus, trens de superfície,
metrôs e bicicletas nas cidades para evitar os congestionamentos, bem
como pleitear ferrovias para desafogo dos pesados caminhões de carga
nas estradas, que engordam as estatísticas de acidentes com vítimas.
Tragédias, aliás, que não se resolvem em mesas redondas com as
associações de construtores de veículos automotivos e os consumidores
para estudar os dispositivos de freios, o raiado dos pneus, etc.
Resolvem-se com o participacionismo social, desde que este postule um
outro modo de vida, sob um horizonte civilizacional que supere o
fetichismo da mercadoria de rodas.

Os verdes tendem a abstrair da história a defesa ambiental, tecendo
uma responsabilização genérica, como se um ascensorista de elevador
tivesse idêntica parcela de envolvimento que o proprietário de uma
fábrica de celulose. “A culpa é do homem”, são as manchetes
jornalísticas nos cadernos especiaissobrea agenda do crescimento
sustentável. Vale salientar, contudo, que os ambientalistas europeus
fizeram a leitura correta das eleições presidenciais brasileiras.
Declararam apoio a Dilma Rousseff, no segundo turno, para que “o voto
libertário em Marina Silva paradoxalmente não se transformasse em uma
catástrofe para as mulheres, para os direitos humanos e para os
direitos da natureza... José Serra não é um socialdemocrata de
centro... Por trás dele, a direita mobiliza o que há de pior...
preconceitos sexistas, machistas e homofóbicos, junto com interesses
econômicos escusos e míopes”. Entre os signatários, Dany Cohn Bendit
(Alemanha), Alain Lipietz (França), Philippe Lamberts (Bélgica),
Monica Frassoni (Itália).

O bom senso (que veio do frio) não contagiou Marina que, ao invés de
dramatizar o momento em que decidia-se a continuidade do projeto
representado pelo governo Lula (avanços sociais, participação cidadã,
política externa soberana) ou a volta ao neoliberalismo
(privatizações, desemprego, corrupção, submissão à Alca e aos EUA),
optaram pela neutralidade. Com o que, dois terços dos eleitores do PV
penderam para o candidato do atraso, sem um gesto sequer da
dirigente-mor para impedir o deslizamento político. A pequenez tirou
do partido o papel de educador das massas, despolitizou as escolhas e
fez tábua rasa das duras batalhas contra as desigualdades sociais e
regionais. Ao contrário de situar os verdes nativos como uma pretensa
alternativa, o vergonhoso silêncio erigiu-os em tristes bengalas
auxiliares da reação nas urnas.

Esquerda versus Direita

Anthony Giddens (Para além da esquerda e da direita, 1994), mentor da
“Terceira Via”, tentou uma síntese superior entre o conservadorismo e
o socialismo, os quais teriam sido abatidos pela marcha da
globalização e a expansão da reflexividade social. O campo da
política, assim, haveria se alterado e cedido terreno aos paradoxos do
neoliberalismo. Sua sugestão para “repensar” o Welfare State (o Estado
de bem-estar social) foi acolhida pelo primeiro-ministro britânico, e
em nada diferenciou-se do receituário de Thatcher/Major. Tony Blair
manteve a legislação que flexibilizava e desregulamentava o contrato
de trabalho e, com cinismo, explicitou em um discurso a essência da
Third Way: “flexibilização sim, mas com fair play”. O livro do
sociólogo inglês mostra o quanto a esquerda desceu ao inferno no
período, rendendo-se ao Consenso de Washington.

Coube a Norberto Bobbio (Direita e esquerda, 1994) defender a
atualidade da díade política que remonta à Revolução Francesa. A
esquerda teria como epicentro o valor da “igualdade” (as pessoas são
mais iguais que desiguais, socialmente). A direita, o valor da
“liberdade” (as pessoas são mais desiguais que iguais, naturalmente).
A importância da reflexão, lançada numa época em que o capitalismo
triunfante trombeteava o “fim das ideologias”, esteve em (re)legitimar
a dualidade político-ideológica. O opúsculo do jurista italiano teve
200 mil exemplares vendidos e 19 traduções em um curto prazo. Como
Fênix, o pássaro da mitologia grega, a esquerda renascia depois de
assassinada pelas agências internacionais de notícias, que viram na
queda do Muro de Berlim (1989) a domesticação da utopia e o
desaparecimento da rebeldia e da esperança.

Mas o princípio da igualdade não exaure a conceituação sobre o que
significa externar uma atitude anticapitalista. No final do século 19,
ser de esquerda era lutar pelos direitos políticos e pelo sufrágio
universal. Não mais que isso. Ao longo do século 20, outras bandeiras
incorporaram-se ao (nosso) prontuário de lutas identitárias: as ações
pelos direitos civis e sociais, contra o colonialismo e pela
independência nacional, o combate à hegemonia imperial estadunidense,
a equanimidade de gênero, as afirmações étnicas, o respeito às
diferenças, a integração dos países latino-americanos, a inversão de
prioridades na administração pública e, ainda, a democracia
participativa, cuja inspiração acha-se condensada na máxima de que “a
emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A
partir dos anos 70, surgiu a questão ecológica.

O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque
complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a
burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à
desconcentração das terras e à socialização do poder político e
econômico. Aquela, desde priscas eras, reitera uma contrariedade ao
pagamento de impostos. Não porque sejam regressivos ou recolhidos com
critérios tributários que penalizam as classes trabalhadoras. Mas
porque, com a ascensão de governos democrático-populares na América
Latina, os fundos públicos são redirecionados por políticas
republicanas à dignificação da vida da população. “Prefiro ser essa
metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo”, cantava Raul Seixas. Isso, para preservar a coerência com a
“justiça social” no enfrentamento à “ordem estabelecida”.
Acrescente-se, no metafórico aniversário de 31 anos do PT.

Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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